A parentalidade é um
termo relativamente recente, que começou a ser utilizado na literatura
psicanalítica francesa a partir dos anos 60 para marcar a dimensão de processo
e de construção no exercício da relação dos pais com os filhos. Apesar de as
dimensões inerentes ao parentesco terem sido estudadas por outras áreas do
saber, como a antropologia, a filosofia e a sociologia, é no campo da
psicologia e da psicanálise que podemos encontrar uma vasta pesquisa referente
aos processos psíquicos e mudanças subjetivas produzidas nos pais a partir do
desejo de ter um filho.
Se
fizermos uma breve retrospectiva histórica, podemos observar que nas sociedades
tradicionais as relações de aliança eram estabelecidas em função do patrimônio
familiar, mas a partir do século XVIII, com o discurso iluminista e com a
importância do romantismo, o amor entre casais e entre pais e filhos é
priorizado e as alianças conjugais passam a ser estabelecidas com base no afeto
e não mais como arranjos externos, que não levavam em consideração as escolhas
individuais. O amor entre pais e filhos é fortemente marcado pela noção de
educação e a formação das crianças torna-se um fator importante para o
desenvolvimento de um país e garantia de uma sociedade saudável.
Como
assinala P. Julien (2000), a modernidade introduz uma disjunção entre o público
e o privado e entre a conjugalidade e a parentalidade. Os arranjos familiares
não dependem somente da parentalidade, mas sim do desejo entre casais de
estabelecerem relações íntimas. Neste contexto, as relações conjugais são
mantidas no espaço privado e dependem somente do desejo de cada um dos
cônjuges. No entanto, quando este casal ou indivíduo decide ter filhos, o
espaço público invade o espaço privado da conjugalidade, organizando as
relações de parentesco e definindo as responsabilidades dos pais e do estado em
relação às crianças. Como exemplo, podemos citar o caso da adoção que coloca a
parentalidade submetida às regras de seleção impostas pelo poder público como
uma maneira de assegurar às crianças pais adotivos "suficientemente"
adequados à função. A argumentação do autor é que esta disjunção, aliada ao
declínio da função paterna e a uma pluralização das referências simbólicas,
coloca sobre o casal parental ou família de origem a responsabilidade de
transmitir às gerações futuras os elementos fundadores de sua constituição
psíquica.
Roudinesco (2003) avança nesta discussão ao discutir as diversas mudanças ocorridas na família ao longo da história ocidental. A autora distingue três grandes períodos na evolução da família. A família dita tradicional é totalmente submetida a uma autoridade patriarcal e tem como objetivo a transmissão de um patrimônio. Entre os séculos XVIII e XX a autora localiza a família moderna, fundada no amor romântico e na reciprocidade afetiva, na qual o filho aparece como responsabilidade dos pais e do Estado. A autora qualifica de "pós-moderna" a família que aparece a partir da década de 1960, definindo-a como uma relação entre dois indivíduos que buscam relações íntimas ou realização sexual.
A
autora enfatiza que, apesar de observarmos mudanças importantes na estruturação
familiar, a família contemporânea em sua dimensão horizontal e em redes não só
se mantém como estrutura organizadora e segura para seus membros, como se constitui
em um espaço fundamental para a troca afetiva e a transmissão simbólica.
Segundo a autora, "a família é o único valor seguro ao qual ninguém quer
renunciar" (Roudinesco, 2003: 198).
A
importância dos argumentos de Julien (2000) e Roudinesco (2003) reside na
indicação de que a relação de consanguinidade ou de aliança não é suficiente
para assegurar o exercício da parentalidade e que a modernidade, ao produzir
uma ruptura entre conjugalidade e parentalidade, demonstra que a parentalidade
deixa de ser o principal objetivo da estrutura familiar, mas ao mesmo tempo
coloca uma questão fundamental para a nossa discussão: afinal, o que sustenta o
desejo de um homem e de uma mulher no processo de transição à parentalidade? Se
a atualidade se define principalmente pela derrocada de referenciais simbólicos
estáveis e por uma pluralização das leis e de possibilidades de subjetivação,
"tornar-se pai" ou "tornar-se mãe" passa a depender muito
mais da história individual de cada um dos pais e de uma lógica do desejo do
que de um modelo de família nuclear tradicional, como no passado.
O
objetivo deste texto é justamente refletir sobre os elementos fundamentais da
construção da parentalidade a partir do conceitual psicanalítico que questiona
a ideia de um modelo familiar ideal e busca indicar como o processo de
tornar-se pai e tornar-se mãe é um longo percurso que se inicia muito antes do
nascimento de um filho. No entanto, pretendemos argumentar que, se este
percurso se inicia na infância de cada um dos pais, o nascimento de um filho
produz uma mudança irreversível no psiquismo parental, podendo, inclusive,
auxiliar na retificação de sua história infantil.
TORNAR-SE PAI,
TORNAR-SE MÃE
A
pré-história da criança se inicia na história individual de cada um dos pais; o
desejo de ter um filho reatualiza as fantasias de sua própria infância e do
tipo de cuidado parental que puderam ter. Como indica Stern (1997), as
representações parentais sobre o bebê se iniciam muito antes de seu nascimento
e, se pensarmos nas brincadeiras de boneca ou nas fantasias das adolescentes,
as representações maternas podem anteceder longamente a concepção. Assim, não
podemos restringir a parentalidade à gestação e ao nascimento de um filho, já
que as identificações feitas na infância influenciam e determinam a forma como
cada um de nós poderá exercitar a parentalidade.
A
obra freudiana é extremamente fecunda e sua teorização sobre o Complexo de
Édipo e sobre o Narcisismo pode nos fornecer indicações preciosas sobre o
processo de constituição da subjetividade, principalmente ao destacar como o
fator infantil permanece no psiquismo do adulto. Em 1914 (1976), no texto sobre
o narcisismo, Freud sugere que o amor parental nada mais é do que um retorno e
reprodução do narcisismo dos pais, que colocam o filho no lugar de "Sua Majestade, o Bebê",
procurando, através da valorização afetiva da criança, resgatar seu próprio
narcisismo infantil perdido. O autor valoriza o lugar que a criança ocupa no
psiquismo parental, principalmente sua função "reparadora", ou seja,
de suturar as feridas narcísicas de seus próprios pais. Dessa forma, pensar na
concepção de um filho coloca em movimento aspectos do narcisismo de cada um dos
pais, assim como suas lembranças e fantasias sobre suas relações objetais
primárias.
A
clínica dos primórdios é um testemunho inequívoco da relação entre os fantasmas
parentais e os sintomas apresentados pelo bebê. Como indica Lebovici (1987), os
conflitos infantis dos pais determinam a natureza das identificações da criança
e os sintomas apresentados pelo bebê têm a marca da problemática parental.
Assim, o processo de filiação se inicia antes do nascimento do bebê, a partir
da transmissão consciente e inconsciente da história infantil dos pais, de seus
conflitos inconscientes, da relação com seus próprios pais, que colorem sua
própria representação sobre a parentalidade.
Bernard
Golse (2002) propõe quatro tipos de representações parentais sobre o bebê: a
criança fantasmática, relacionada à criança que os pais separadamente têm em
mente a partir de sua própria história; a criança imaginária como uma
representação menos inconsciente que pertence ao casal, como traços imaginados,
sexo, etc; a criança narcísica ligada à representação de seus ideais, de como o
filho irá sucedê-los; e a criança mítica ou cultural, que se refere a um grupo
de representações coletivas de uma determinada sociedade em um determinado
momento.
Essas
representações influenciam os diferentes tipos de interação que ocorrem entre o
bebê e seus cuidadores, podendo facilitar a instauração de vínculos afetivos
seguros ou dificultar seu processo. Não podemos esquecer que os afetos
ambivalentes marcam a relação entre os pais e o bebê, pois ao mesmo tempo que o
nascimento de um filho traz consigo expectativas de que o bebê possa reparar falhas
da história parental, provoca também uma ruptura no equilíbrio do casal,
fazendo com que os fantasmas edípicos seja reativados. Assim, é comum que o pai
se sinta excluído da díade mãe-bebê e vivencie o bebê como um rival, reativando
sua própria vivência infantil de se sentir excluído da relação dos pais; ou que
a mãe se sinta inadequada na função materna por não conseguir abrir mão de um
modelo idealizado.
Os
trabalhos de Stern (1992, 1997) sobre a constelação da maternidade e sobre as
relações interpessoais na primeira infância indicam como as representações dos
pais sobre o bebê e sobre eles mesmos como pais desempenham um papel importante
na natureza dos vínculos estabelecidos entre pais e filhos e se iniciam antes
das interações atuais com o bebê, englobando as fantasias parentais, medos,
sonhos, lembranças da própria infância e profecias sobre o futuro do bebê.
A partir de dados
oriundos de pesquisas empíricas sobre o apego, o autor ressalta que os
resultados indicam que as representações da mãe sobre sua própria mãe são um
importante fator de predição do padrão de apego que a mãe estabelecerá com seu
próprio filho. No entanto, o aspecto mais preditivo do futuro comportamento
materno não é o que ocorreu no passado, mas sim a forma como a história passada
é organizada em uma narrativa. Ou seja, a narrativa da história passada pode
ser tão relevante como a história passada em si.
Freud
([1924] 1976), ao analisar o percurso subjetivo da mulher, sugere que o lugar
designado a um filho é o resultado de um complicado processo de resolução
edípica, diferente da trajetória masculina. Apesar de não ser nossa intenção
retomar toda a argumentação freudiana relativa à constituição da feminilidade,
cabe ressaltar alguns pontos que nos parecem fundamentais para nossa discussão.
Segundo o autor, a feminilidade normal adviria de um abandono da posição fálica
e de uma aceitação da castração materna que possibilitaria o acesso ao pai e o
desejo de ter o pênis do pai ou algo que o representasse. Assim, o desejo de
ter um filho seria um deslizamento do desejo de ter um pênis, colocando o bebê
numa equação simbólica: bebê = falo. Nesta perspectiva, a maternidade seria a
solução aos impasses da feminilidade e a resolução edípica por excelência. Não
podemos deixar de assinalar que Freud ([1931] 1976), no texto sobre a
sexualidade feminina, se interroga sobre a feminilidade, ressaltando a
importância da relação pré-edípica entre a menina e sua mãe para a constituição
da posição feminina.
Bydlowiski
(2002) sugere que o desejo de ter um filho vai além da demanda fálica de
completude e pode ter dois significados: um consciente, de ser mãe, ligado à
perpetuação da espécie, e outro inconsciente, relacionado à elaboração da
feminilidade, às representações da maternidade, ao lugar designado ao filho no
inconsciente da mulher. A gravidez, por ser um momento de permeabilidade entre
as representações conscientes e inconscientes, permitiria uma investigação
maior sobre as significações inconscientes do desejo de ter um filho. A autora
denomina "transparência psíquica" o momento em que os fragmentos do
pré-consciente e do inconsciente chegam facilmente à consciência. Este estado
de transparência psíquica se estabelece porque na gravidez o equilíbrio
psíquico encontra-se abalado pelo duplo status do bebê: ele está presente no interior
do corpo da mãe e em suas representações mentais, mas está ausente da realidade
visível.
A gestante faz uma ponte
entre a situação da gravidez atual e lembranças de seu passado, diminuindo seu
investimento no mundo exterior e permitindo que reminiscências antigas e
fantasmas geralmente esquecidos venham à tona sem serem barrados pela censura.
Assim,
a posição da criança no inconsciente materno relaciona-se à sexualidade
infantil que retorna na gravidez de maneira nostálgica como um encontro íntimo
da mulher consigo mesma, encontro em que a criança só pode ser representada por
elementos do passado.
É
interessante observar como durante a gravidez e no período pós-natal a
constelação da maternidade se torna o eixo organizador dominante da vida
psíquica da mãe, deixando em segundo plano o complexo edípico (enquanto eixo
organizador nuclear). Ou seja, a tríade edípica mãe, mãe-da-mãe, pai-da-mãe e
sua reedição mãe-pai-bebê saem de cena para dar lugar a uma nova tríade psíquica:
mãe-da-mãe, mãe-bebê (Stern, 1997).
O
autor relaciona a constelação da maternidade a três preocupações e discursos
diferentes, mas ligados, que acontecem interna e externamente: o discurso da
mãe com sua própria mãe, especialmente com a mãe de sua infância, seu discurso
com ela mesma, especialmente com ela mesma como mãe, e seu discurso com o bebê.
Essa trilogia da maternidade passa a ser sua maior preocupação, requerendo um
profundo realinhamento de seus interesses e desejos.
O
acesso à paternidade também implica profundas transformações que se iniciam a
partir da identificação edípica ao modelo paterno, mas que apontam para a
reativação de uma relação primordial com a mãe. As perturbações somáticas que
afetam os homens durante a gestação de suas companheiras seriam exemplos do
conflito entre o próprio desejo de maternidade do homem e a identificação a seu
pai (Bydlowski & Luca, 2002). Estudos empíricos indicam que a grande
ocorrência de distúrbios psicossomáticos em homens durante a gravidez de suas companheiras
demonstra que tais transtornos não são sinais de psicopatologia e sim a
confirmação de uma identificação feminina. Através de sua identificação com a
gravidez da mulher, o homem divide com a mulher alguns sintomas e ela, em
retribuição, inclui o pai em suas representações do bebê, criando um espaço
para os cuidados paternos, antes mesmo do nascimento do filho (Trethovan e
Conlon, 1965; Stern, 1997).
Freud
([1924] 1976), em "A dissolução do Complexo de Édipo", indica como a
ameaça de castração impulsiona o menino a sair do conflito edípico através da
identificação ao pai e do acesso à posição masculina. Para conservar sua
virilidade, a criança abre mão do desejo de ser amada pelo pai (posição
feminina) e do desejo de ter a mãe (pai como rival), identificando-se aos
atributos paternos, à possibilidade de ser como o pai no futuro ao invés de
tentar tomar o seu lugar. Assim, a resolução do Édipo permite a triangulação
relacional e possibilita ao homem, no futuro, aceder à paternidade e abrir um
espaço para o bebê, funcionando como uma ligação entre este e o mundo.
Nesta
perspectiva, se a maternidade pode ser uma solução para a castração por seu
estatuto ilusório de completude narcísica, a função paterna confronta a mulher
com seu estatuto de sujeito desejante, ao indicar um espaço que se coloca entre
a mãe e o bebê. A função materna e a introdução da função paterna permitem
sustentar a dupla inserção do bebê enquanto produto e enquanto alteridade - e é
justamente esta tensão entre ausência e presença, entre dentro e fora, que
permite ao bebê aceder ao processo de subjetivação.
A PARENTALIZAÇÃO DOS
PAIS
O
estabelecimento de laços entre os pais e o bebê favorece seu desenvolvimento
afetivo e cognitivo, mas, ao mesmo tempo, propicia aos pais o sentimento de
serem "pais suficientemente bons" especificamente para aquele bebê.
Diversos autores (Konicheckis, 2008; Golse, 2006; Stern, 1997) ressaltam a dimensão
simbólica do acesso à parentalidade, sugerindo que o nascimento de um filho
transforma definitivamente o psiquismo de cada um dos pais. Stern indica que o
nascimento de um filho provoca uma neoformação psíquica nos pais, sugerindo que
a inclusão do bebê no psiquismo parental produz mudanças profundas e
irreversíveis.
Essas
mudanças ocorrem não só em função das projeções e representações parentais
sobre o bebê, mas da mudança que a presença real do bebê provoca nas interações
entre ele e seus pais. O nascimento de um filho implica uma dupla dimensão:
para que um bebê sobreviva física e psiquicamente, é necessário inscrevê-lo em
uma história familiar e transgeracional. No entanto, a dimensão ascendente da
transmissão (filhos-pais) é igualmente fundamental, pois só o reconhecimento do
filho em sua diferença permite aos pais construir uma relação com a marca do
novo e da criatividade, indo além de uma repetição do passado e permitindo que
o bebê se aproprie das marcas e inscrições de sua história relacional inicial.
Golse
e Bydlowski (2002) postulam que a maternidade introduz uma dialética entre o
bebê interno e o bebê enquanto objeto externo, ou seja, entre o bebê que a mãe
foi ou que acredita ter sido e seu bebê de carne e osso. Essa passagem
testemunha o trabalho psíquico efetuado pela mãe, que se inicia na gravidez com
uma reativação do objeto interno (metáfora de seu passado, de sua infância)
para o gradual reconhecimento do bebê enquanto alteridade, tendo uma dimensão
subjetiva que vai além das representações parentais. Logicamente essa passagem
não ocorre abruptamente, mas decorre da possibilidade de um desinvestimento
progressivo do objeto interno em benefício do bebê enquanto externo à mãe. Nem
sempre esse processo coincide com o nascimento do bebê, sendo comuns algumas
mães tentarem reter o objeto interno perdido, tendo dificuldade em olhar para
seu bebê.
A
função paterna, enquanto função de mediação entre a mãe e o bebê, auxilia a mãe
a reconhecer o bebê em sua dimensão de sujeito e alteridade, já que para o pai
o bebê se constitui como objeto externo desde a concepção. É nesse momento que
a presença do bebê real funciona como um catalisador que modifica os fantasmas
parentais e permite aos pais retificar as fantasias de sua infância. Na medida
em que o bebê não é um reservatório passivo dos cuidados parentais, suas
respostas podem modelar o tipo de parentalidade que lhe é oferecida,
propiciando novas formas de interação que vão além dos modelos identificatórios
que os pais trazem de suas histórias individuais.
Corroborando
essa hipótese, a clínica da relação pais/bebê atesta esta dupla dimensão: se,
por um lado, os fantasmas parentais influenciam o aparecimento de sintomas
psicossomáticos no bebê (Debray, 1999; Lebovici, 1987), as competências e
capacidades interativas dos bebês reparam e modificam as fantasias dos pais,
auxiliando-os no processo de "parentificação" (Houzel, 2004).
A
noção implícita nessa ideia é a de uma mutualidade nas trocas entre pais e bebê
que possibilita ao infante iniciar o processo de subjetivação e permite aos
pais se apropriarem de seu lugar de pais. Haag (1985) propõe a noção de
"identificações intracorporais" para valorizar o trabalho de
encenação corporal feita pelo bebê segundo o qual a criança representa em seu
corpo a experiência de uma relação significativa com a mãe através de junções
corporais que lhe permitem acesso a uma vivência sensorial e emocional
reasseguradora. Nessa perspectiva, podemos valorizar a concepção de um
psiquismo que se constrói através das trocas afetivas e não-verbais entre o
bebê e seus adultos fundamentais, assim como enfatizar a ideia da parentalidade
como um processo de co-construção, que é modificado pela presença real do bebê.
Como
indica D. Houzel (2004), a parentalidade compreende numerosos aspectos que se
relacionam à realidade psíquica de cada um dos pais, principalmente as
modificações psíquicas que se produzem em cada um deles no decorrer da gestação
e do pós-parto, assim como o processo de parentificação que se relaciona ao
campo dos cuidados parentais e às trocas estabelecidas entre os pais e a
criança.
O
autor sugere refletir sobre o conceito de parentalidade a partir de três eixos.
O primeiro se refere ao exercício da parentalidade, aqui tomado no sentido de
uma função que define e organiza os laços de parentesco e a transmissão de
regras e valores de um determinado grupo social. Houzel (2004) ressalta como o
exercício da parentalidade se dá através dos aspectos jurídicos do parentesco e
da filiação. O segundo eixo se refere à experiência da parentalidade, que
compreende as modificações psíquicas que se produzem nos pais no decorrer do
processo de sua transição para a parentalidade. O terceiro eixo é designado de
prática da parentalidade, englobando todo o campo dos cuidados parentais, ou
seja, o campo das interações afetivas e fantasmáticas entre os pais e seu
filho. Esses três eixos articulam-se entre si e definem o processo de
constituição de um lugar parental.
Na
perspectiva do autor, manter uma articulação entre os três eixos da
parentalidade permite evitar privilegiar apenas uma dimensão do processo em
detrimento de outra. Assim, é preciso reconhecer a influência da realidade
psíquica de cada um dos pais, as transformações ocorridas nas formas de
parentalidade, bem como a importância das interações e trocas entre pais e
filhos para definir o processo de transição à parentalidade e favorecer o
funcionamento das famílias na atualidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os
estudos sobre os arranjos familiares na atualidade revelam que a mobilidade
social, o impacto das tecnologias e a ausência de referências simbólicas
estáveis afetam as expectativas de homens e mulheres perante as relações
interpessoais, já que não existem mais parâmetros externos que definam
completamente a estrutura familiar ou a função parental (Kehl, 2001; Quartim de
Moraes, 2001).
Alguns
autores enfatizam a disjunção entre conjugalidade e parentalidade, argumentando
que a família atual é definida pela relação conjugal, mas não necessariamente
marcada pela parentalidade (Julien, 2000; Roudinesco, 2003). Outros postulam
uma anterioridade lógica da conjugalidade em relação à parentalidade,
enfatizando como a qualidade da relação conjugal atua como um fator de proteção
dos filhos (Wagner & Mosmann, 2009). Ou seja, os bons níveis de adaptação e
equilíbrio na vida a dois repercutem positivamente na relação com os filhos.
Muitas
pesquisas, no entanto, reconhecem a interdependência entre a relação conjugal e
a parentalidade, pois, como procuramos argumentar ao longo do texto, as
relações entre pais e filhos são influenciadas pela história infantil de cada
um dos pais e pelo modelo de relação amorosa que eles internalizaram. Ou seja,
a parentalidade é fortemente marcada pelas fantasias e fantasmas parentais,
podendo ser exercida de forma criativa ou sintomática, tendo a função de
transmitir a história transgeracional às gerações futuras ou de repetir
sintomaticamente os segredos e conflitos passados (Zornig, 2009).
Na
clínica direcionada à parentalidade, temos observado cada vez mais a
necessidade de manter uma relação dialética entre a história cultural e
familiar que antecede os pais e a possibilidade de criar uma nova relação, um
novo espaço entre pais e filhos. Estudos empíricos sobre a família e o
casamento na contemporaneidade revelam que, apesar da diversidade e
flexibilização de modelos conjugais e arranjos familiares propostos na
atualidade, existe um descompasso entre velhos e novos modelos de
conjugalidade, de vida familiar e de exercício da parentalidade (Diniz, 2009;
Jablonski, 2009). Na clínica psicanalítica este descompasso se traduz pela
dificuldade dos pais em exercerem a função parental de maneira plena, ou seja,
reconhecendo a dívida simbólica da transmissão geracional, sem, no entanto, se
limitarem a repetir padrões que desconsiderem o tempo presente.
As
pesquisas desenvolvidas sobre a primeira infância nas últimas décadas,
principalmente estudos vindos da psicologia do desenvolvimento e da
neurociência, nos apresentam um bebê ativo desde o nascimento, com competências
e capacidades que lhe permitem interagir com seu entorno, diferenciar
características de seus cuidadores, engajar-se em interações afetivas e até
mesmo modular o tipo de interação no qual se encontra. O bebê do século XXI é
um parceiro ativo de suas interações com o mundo e com seus objetos e não mais
pensado como passivo e reativo simplesmente. Em oposição ao que se acreditou
por muito tempo, o bebê, desde o início, ao invés de estar centrado sobre si
mesmo, engaja-se em trocas emocionais significativas com seus cuidadores.
Diversos
autores têm desenvolvido pesquisas sobre a intersubjetividade primária
(Stern,1992; Trevarthen, 2001) sobre as competências e capacidades do bebê
(Rochat, 2001), sobre a diferenciação entre o self e os objetos (Bermudez & Marcel,
1995; Braconnier, 1998) para marcar o impacto do bebê sobre o mundo e suas
possibilidades inatas de relação e interação. Nenhuma dessas pesquisas, no
entanto, desconsidera um fator essencial - de que é necessário um meio ambiente
afetivo e sensível às necessidades do bebê para que seu potencial inato se
atualize e se desenvolva. A noção de plasticidade cerebral corrobora esta ideia
através da ênfase na inter-relação entre as capacidades do bebê e o
investimento de seus objetos primordiais para que o desenvolvimento neurológico
e afetivo se constitua.
Cabe
assinalar que, no contexto deste texto, as pesquisas desenvolvidas no âmbito da
primeira infância nos auxiliam a defender a noção de uma coconstrução no
processo de transição à parentalidade, que tem início nas relações objetais
precoces de cada um dos pais, mas que pode ser retificado pelo processo de
vinculação estabelecido com o filho (Solis-Ponton, 2004).
A
noção de sintonia afetiva, mecanismo pelo qual os pais comunicam ao bebê aquilo
que é compartilhável, ou seja, as experiências ou comportamentos que se
encontram dentro de um território de mútua aceitação, é particularmente
relevante para esta discussão (Stern, 1992). Segundo Stern, os pais selecionam
consciente e inconscientemente as experiências e os afetos a serem
compartilhados, criando um modelo de relação interpessoal que será a base para
o mundo intrapsíquico da criança. Assim, "os medos, desejos, proibições e
fantasias dos pais desenham o contorno das experiências psíquicas da
criança" (Stern, 1992: 186).
Nesta
perspectiva, as fantasias parentais sobre o bebê (bebê fantasmático), incluindo
seus medos, sonhos, lembranças da própria infância, modelos de pais, ou seja, o
mundo mental de suas representações, assumem o estatuto de uma ancoragem
fundamental à construção do senso de self do sujeito. Da mesma forma, como
ilustrou magistralmente Selma Fraiberg (Fraiberg, Adelson & Shapiro, 1975),
as fantasias maternas podem aparecer como "fantasmas que rondam o quarto
do bebê", contribuindo para distúrbios no relacionamento pais-bebê e na
formação de sintomas na primeira infância.
Os
estudos direcionados a uma clínica dos primórdios são fundamentais para
pensarmos em estratégias clínicas direcionadas não só à primeira infância, mas
a condições que permitam e sirvam como fonte de apoio à construção da
parentalidade. O desenvolvimento de pesquisas no âmbito das relações objetais
precoces deverá dar subsídios importantes para a clínica da parentalidade e da
primeira infância, pois, se a parentalidade se inicia na infância dos pais, seu
exercício e sua prática influenciam, de maneira indelével, a construção
subjetiva da criança.
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Créditos no link: Silvia Maria Abu-Jamra Zornig